Água e dendê: vencedora do concurso do BNDES para revitalização da Pequena África explica projeto paisagístico
19/07/2025
(Foto: Reprodução) Sara Zewde fala em cerimônia na cerimônia de premiação do concurso BNDS Pequena África
O projeto “Pequena África: Memória Continental”, liderado pela arquiteta americana Sara Zewde, conquistou o primeiro lugar do Concurso BNDES Pequena África, que busca promover a requalificação urbana do distrito histórico da Zona Portuária do Rio de Janeiro.
A disputa faz parte da pesquisa do escritório Jaime Lerner, responsável pelo pela elaboração de um projeto de reforma urbana. As ideias selecionadas serão apresentadas Comitê Gestor do Cais do Valongo para aprovação.
O portão das Docas de Dom Pedro selaria a conexão ao mar com um grande espelho d'água
Reprodução: Studio Zewde
Em entrevista ao g1, Sara contou as ideias por trás do projeto, que tem como centro, o sítio arqueológico do Cais do Valongo e propõe mudanças também em áreas como a Praça da Harmonia e a Rua Sacadura Cabral.
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Reconhecido como Patrimônio Cultural Mundial pela UNESCO, foi o principal porto de desembarque de africanos escravizados e é o maior achado material da história da escravidão nas Américas.
O sítio do Cais do Valongo visto do alto
Digulgação/IDG
A arquiteta ressaltou a importância do local, que, para ela, é um monumento em si próprio. "É uma janela para a história mundial, do mundo em que a gente vive, que foi construído por esse processo (da escravidão)."
Para aproximar passado e presente, Zewde propôs uma rampa ampla, com inclinação suave, de 5%, partindo de um singelo baobá - árvore de grande porte, típica do continente africano - até o sítio arqueológico.
O espaço foi pensado como um de memória, mas também de convívio no presente. "Eu quis repensar a ideia do memorial em si", disse Sara. "É uma ideia que vem da história europeia e ocidental, por isso busquei na cosmologia afro-brasileira, outras maneiras de preservar a memória no espaço."
Ali se encontram os dois eixos nos quais se concentra o projeto - as Ruas Barão de Tefé e Sacadura Cabral.
Zewde propôs uma rampa longa e sutil para integrar o Sítio Arqueológico ao espaço
Reprodução: Studio Zewde
Ilustração Cais do Valongo com as modificações propostas no projeto
Reprodução: Studio Zewde
A primeira via, construída depois que a área foi aterrada, representa os últimos metros da “Passagem do Meio” — o último ponto de contato com o mar para milhões de africanos escravizados que desembarcaram no Rio de Janeiro.
Para ela, foi proposta uma "procissão silenciosa de elementos aquáticos". Com espelhos d'água muito rasos, sobre os quais é possível andar.
Caminho entre o Cais do Valongo e a costa teria espelhos d'água para evocar o mar
Reprodução: Studio Zewde
O caminho seria sombreado por dendezeiros, planta também de origem africana. Segundo Sara, a árvore foi muito usada no paisagismo colonial e a ideia é retomá-la "não para mostrar o poder colonial, mas para mostrar o poder da terra".
Esses elementos foram escolhidos para inspirar solenidade aos visitantes, enquanto resgatam elementos importantes das tradições firmadas pela diáspora africana no Brasil. Além disso, água e vegetação ajudam a produzir um microclima mais fresco, em uma região marcada pelo calor.
A procissão termina nas Docas de Dom Pedro, onde um amplo espelho d'água foi pensado para unir, visualmente, a terra e o mar.
Caminho entre o Cais do Valongo e a costa teria espelhos d'água para evocar o mar e árvores de dendê.
Reprodução: Studio Zewde
A vista do oceano, pelo portão do armazém, espelharia a metafórica “Porta do Não Retorno”, na Ilha de Gorée (Senegal) ou na de Ouidá (Benin).
A Rua Sacadura Cabral - segundo eixo contemplado pela proposta - um dia tocou o mar e recebeu os africanos escravizados.
E, centenas de milhões de anos antes, tocava a terra que hoje constitui a costa do continente africano, antes que a deriva continental separasse os territórios.
Diagrama que mostra a conexão milenar do espaço com o continente africano. Na Pangeia, os dois territórios faziam parte de um só.
Reprodução: Studio Zewde
Sara se inspirou nessa conexão e no icônico calçadão de Copacabana - desenhado por Burle Marx - para criar um calçamento com frestas diagonais, que faz referência a uma trança, uma costura, unindo os dois continentes.
As marcações no pavimento também deixam visível a terra vermelha, característica da costa brasileira e africana e favorecem a drenagem superficial do solo, contribuindo para a irrigação natural da vegetação.
Pavimento proposto para a Rua Sacadura Cabral
Reprodução: Studio Zewde
No espaço do antigo Largo do Depósito, onde pessoas escravizadas eram preparadas para a venda, Sara imaginou um jardim. "Quis transformar um espaço de tortura em um lugar de cura", disse.
A praça teria uma horta medicinal, que alimentaria uma Casa de Zungu, sediada no prédio que abrigou a instituição Afoxé Filhas de Gandhy.
Antigo prédio da Associação Afoxé Filhos de Gandhi seria transformado em um nova Casa de Zungu
Reprodução: Studio Zewde
Por fim, a Praça da Harmonia, que já é um importante espaço cultural e de convivência ganharia "jardins de brincar" no entorno do histórico coreto. Os parquinhos infantis seriam inspirados na geometria da arte africana.
Praça da Harmonia ganharia um "jardim de brincar", com parquinho inspirado na geometria da arte africana
Reprodução: Studio Zewde
Sobre a arquiteta
Cofundadora do Studio Zewde, em Nova York, e professora na Harvard Graduate School of Design, a texana, filha de imigrantes etíopes, se interessou por urbanismo depois de testemunhar a reconstrução de cidades inteiras, que foram destruídas pelo furacão Katrina, em 2005.
Apesar de ter sido criada na Louisiana, no sul dos Estados Unidos, Sara tem uma história com o Rio que não é de ontem.
Depois de formada, Sara veio trabalhar na sede carioca do Institute for Transportation and development Policy (ITDP). Ela já estava apaixonada pelo Rio quando, em 2011, os primeiros ladrilhos do Cais do Valongo foram encontrados, durante escavações para as obras do Porto Maravilha.
"Eu realmente acho que foi o universo, os ancestrais", disse, celebrando a coincidência de estar no lugar certo, na hora certa.
Ali ela se encantou por outra forma de reconstrução - a de uma história enterrada. E passou a visitar a região e conhecer a comunidade.
"Eu fiquei impressionada com o quanto as pessoas já estavam pensando no futuro", conta. Logo depois das primeiras descobertas, ativistas já levantavam a ideia de transformar a região em um museu a céu aberto.
De volta aos EUA, ela continuou estudando o tema e em 2014 foi escolhida como a National Olmsted Scholar do ano, que descreve como "a maior honra acadêmica do país".
A bolsa permitiu que voltasse ao Rio para trabalhar nos projetos de valorização da memória na região, colaborando com o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH).
Depois, voltou para casa e abriu seu estúdio, mas não deixou de se debruçar sobre o tema, chegando a liderar um laboratório sobre ele em Harvard.
"Sou apaixonada pela Pequena África e pelo Rio", disse.
Ela conta que ficou muito feliz em participar do concurso e que pôde observar seu crescimento como arquiteta ao trabalhar em um projeto para uma região que faz parte da sua vida há tanto tempo.
O concurso
Classificada em primeiro lugar, Sara Zewde recebe o certificado das mãos de Leonardo Campos, gerente do BNDES
Reprodução: André Telles/BNDES
Lançado em março, o edital foi direcionado a equipes lideradas por arquitetos e urbanistas negros e faz parte da Iniciativa Valongo, coordenada pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES).
O projeto busca potencializar o legado do território do Sítio Arqueológico Cais do Valongo por meio de intervenções urbanísticas, novos equipamentos culturais e ações de inclusão social.
A iniciativa ganhou força com a retomada do Comitê Gestor do Cais do Valongo, em 2023. Na época, o governo federal anunciou a intenção de construir um museu para abrigar os artefatos históricos encontrados na região.
Margareth Menezes, Anielle Franco e Janja visitam o Cais do Valongo
Eliane Santos/g1
Segundo Marcos Motta, engenheiro e assessor da presidência do banco, a ideia é transformar o espaço em "um Inhotim negro gigante" e torná-lo identificável.
"Quando você entra em Chinatown você sabe que está em Chinatown. Quando você entra em Little Italy você sabe que está em Little Italy", disse.
O cais
Encontrado em escavações feitas durante as obras de revitalização da região, o local guarda parte da história da escravidão.
De acordo com o antropólogo Milton Guran, as ruínas do Cais do Valongo são os únicos vestígios materiais de desembarque de africanos escravizados nas américas.
Pintura de Rugendas mostra Cais de Valongo no Rio de Janeiro
Iphan
O Valongo possui cerca de 350 metros de comprimento e vai da Rua Coelho e Castro até a Sacadura. Ele começou a ser construído no no fim do século XVIII e ficou pronto em 1811. A região era desabitada na época e o acesso era difícil. Por isso, foi escolhida para sediar o porto de desembarque de escravos.
A área deixa de funcionar como ponto de entrada de escravos por volta de 1831, quando leis contra a escravidão começaram a ser assinadas. Nessa época, o tráfego passou a ser clandestino e acontecia no período noturno.
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